"Apenas e só" mais um emigrante
Transcrevo na íntegra o texto que João Tordo publicou acerca da ida do seu pai, o cantor Fernando Tordo, para o Brasil
"Ontem, o meu pai foi-se embora. Não vem e já volta; emigrou
para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos.
A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros,
mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido,
durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para
os concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, meio
cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) com um
sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira.
Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo,
senti-me feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os
pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir
baralhar essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra
vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo
animado pelas coisas novas que irá encontrar.
Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém,
excepto à família do senhor Tordo. Acontece que o meu pai, quer se goste ou não
da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua
partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto
regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a
razão pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários
à sua partida.
Muita gente se despediu com palavras de encorajamento.
Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram
que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe
palavrões dos duros. Associam-no à política, de que se dissociou activamente há
décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros
músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um povo). E
perguntaram o que iria fazer: limpar WC e cozinhas? Usufruir da reforma
dourada? Agarrar um "tacho" proporcionado pelos
"amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que
"deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros.
Eu entendo o desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda
mais natural quando vivemos como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades
por que passamos. O que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa
cheia de defeitos como todos nós – e como todos os autores destes singelos
insultos –, fez aquilo que lhe restava fazer.
Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da
música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das vozes
mais apreciadas do público de hoje – Carminho, Carlos do Carmo, Mariza, são
incontáveis –, fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto nos for
permitido ouvir música.
Pouco importa quem é o homem; isso fica reservado para a
intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo simpático e cheio de
humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu com uma mala às costas e
uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que
tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC e
cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará
senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha.
Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar,
contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou
com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A
segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos
os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros como
ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste
país – do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de defeitos,
quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos. Fracassaram
nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos mudar.
Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la,
deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos
seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui – e precisar de trabalhar para, aos
65 anos, não se transformar num fantasma ou num pedinte –, pegou nas malas e
numa guitarra e se foi embora.
Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a
sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu vou ter muitas
saudades dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi
embora."
Caro Fernando, que o Brasil te dê o que a merda dos governantes do NOSSO país te tiraram.
Jorge Fernandes
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